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Do outro lado do telefone, meu pai falava de tudo pra me acalmar. Só muito tempo depois que a história passou foi que eu fiquei imaginando a angústia dele, de estar do outro lado e não poder fazer nada. A rua estava movimentada, mas eu não via ninguém nem nada além do telefone público. E tudo que eu queria era sair de Berlim. Papai disse que enviaria um valor suficiente pra eu comprar a passagem e comer decentemente por lá.
Milagrosamente, o depósito, que pode demorar até um dia inteiro pra chegar, caiu na minha conta duas horas depois. Voltei para a estação e, depois da fila enorme, encontrei com a mesma atendente, que bondosamente iniciou o processo de reserva todo de novo pra mim. Eu deixei bem claro que queria sair no dia seguinte, num trem noturno. Como a viagem era bem longa, achei que viajar de noite me faria sentir menos fome e - consequentemente - gastar menos dinheiro.
Saí da estação segurando a passagem como quem segura um filho. Que alívio! Voltei pro hotel e comi como um homem das cavernas. Quando entrei no quarto, olhei para o alarme no teto, do qual veio a voz horrenda me mandando sair, e senti um frio na barriga. Sussurrei pra ele: por favor, não toca. Não... toca. Li de novo o texto de Romanos sobre perseverança e pensei que não podia ficar pior do que aquilo. Tinha que ser o fim dessa jornada.
Acordei leve no dia seguinte. Com o que sobrou da compra da passagem, resolvi dar mais uma chance pra Berlim. Na saída do hotel, peguei o trem errado e fui parar em Zossen, uma cidade a 30km de Berlim. A estação mais bizarra que eu já vi na minha vida. Mas meu humor tava tão lá em cima que nem me mordi de raiva na espera de 50 minutos pelo próximo trem. Andei por Berlim e no final do dia até resolvi passar também em Potsdam, cidade que sediou a conferência em que os vitoriosos da Primeira Guerra Mundial dividiram a administração da Alemanha.
Voltei pro hotel, tomei um banho bem demorado, jantei que nem um ogro de novo e fiz meu check-out. Dali era só seguir pra estação e embarcar no trem que finalmente me levaria para a Suíça. Como cheguei cedo lá, fiquei vagando pela estação e comprei uma salada de frutas baratíssima que seria meu café da manhã no dia seguinte (comida de trem é bem carinha!). Quando finalmente embarquei, encontrei um tiozinho sentado no meu lugar,
- Oi, moço. Boa noite! Desculpe o incômodo, mas esse lugar é meu,
- Boa noite. Desculpe, mas este lugar é meu.
- Não. É meu. Eu tenho certeza.
- E eu também. Poltrona 15, janela. Meu lugar.
O sangue ferveu. Como ele ousava tirar minha paz depois de tudo que eu passei? Foi aí que veio a sugestão mais infeliz que eu já fiz:
- Vamos fazer o seguinte. Me mostre o seu ticket, e eu te mostro o meu. Daí a gente vê de quem é o lugar.
- Ótimo. Aqui está.
Entreguei o meu ticket, pra ele analisar enquanto eu via o dele. E realmente. Poltrona 15. Como podia? Quando voltei a atenção pra ele, seu olhar era de pena. Ai. Meu. Deus. Lá vinha bomba, com certeza.
- Moça, este lugar é seu mesmo. Mas é pra amanhã. [dia 18]
- Como pode? Eu pedi a passagem pra hoje! [dia 17]
- Deve ter sido algum engano...
- O que eu faço?
- Espera o fiscal chegar. E conta com a sorte.
Esse "conta com a sorte" não era ironia. O trem ia começar a sair logo e eu não podia desembarcar porque eu não tinha pra onde ir! Pro hotel seria impossível voltar, já que eu tinha feito o check-out e eu não tinha dinheiro pra pagar por algum outro lugar. Ao mesmo tempo, ficar no trem significava as seguintes possibilidades:
a) Comprar o bilhete na hora. (Impossível. Não tinha dinheiro.)
b) Pagar uma multa grotesca. (Impossível. Não tinha dinheiro.)
Não sendo realizáveis as alternativas acima, eu tinha duas punições possíveis:
a) Ir presa. (Desagradável.)
b) Ser expulsa no trem na parada seguinte. (Desagradável.)
Mesmo reconhecendo meu risco, decidi ficar. Eu estava obstinada a sair da Alemanha o mais rápido possível, e ainda que eu tivesse que me amarrar pela janela eu não iria desistir. Fora que minha passagem de volta pro Brasil estava comprada para aquela semana, saindo da Suíça. Eu tinha mesmo que voltar! O tio ficou com tanta pena que me deu o lugar dele - a bendita poltrona 15, pela qual lutamos.
Gente, eu acho que nunca orei tanto na minha vida. Que bom que a paciência de Deus é infinita, porque eu realmente e-n-c-h-i! Passava da meia-noite quando eu ouvi as botas do inspetor perturbando o chão (e o resquício de paz e confiança que eu tinha). O vi pedir os tickets de todos à minha frente. E todo mundo tinha! Que raiva! Nenhum aliado. Quando ele chegou perto de mim, não lhe deu nem a chance de falar. Só não ajoelhei porque não tinha espaço. Entreguei o ticket, despejando junto a minha angústia:
- Moço, pelo amor de Deus, m e d e i x a f i c a r n e s t e t r e m! Eu sei que eu tô errada, eu sei que é pra amanhã. Mas foi a atendente que se confundiu e colocou essa data. Moço, eu preciso sair de Berlim. Eu preciso ir pra Suíça. De lá eu volto pro meu país esta semana, eu não posso perder esse voo. Moço, eu não tenho mais dinheiro nem roupa. PELOAMORDEDEUSMEDEIXAFICARAQUIIIII!!!
Eu não contei quanto tempo ele demorou pra responder, mas pareceu uma eternidade. Ele olhava fixamente pro ticket, e não mexia um músculo sequer do rosto. Nenhum sinal de compaixão. Nenhum sinal de perversidade. Nenhum sinal de nada. Depois que eu tive uma sucessão de micro-ataques-cardíacos repetidas vezes, num intervalo de tempo que pareceu durar uma vida, ele me entregou o ticket de volta - ainda sem olhar pra mim - e disse: ok.
Foi só isso. Só esse frio ok. Mas o alívio foi tão grande que eu tive que me segurar pra não tascar um beijo nele ali e dizer que quando ele precisar de um rim, uma córnea, uma perna, é só me ligar. Olhei pro tio que me dera o lugar dele e encontrei um sorriso. Ele tava torcendo por mim! Parecia que tiraram uma Alemanha inteira das minhas costas, e era tudo o que eu queria. Caí num sono profundo assim que o inspetor foi embora. Abri os olhos algumas horas depois e vi uma cidade linda, toda iluminada na madrugada. Era Frankfurt. Disse pra cidade (sim. eu tenho esse nível de loucura): Você é linda. Mas eu não sei se piso aqui de novo na minha vida, mesmo que seja pra te conhecer.
Quando cruzamos a fronteira, já de manhã, eu não conseguia conter a alegria. Minha salada de fruta tava estragada e eu nem liguei! Nada podia tirar a alegria de estar na Suíça novamente. Segura. E me distanciando cada vez mais da Alemanha...
Por muito tempo, voltar pra lá nem cruzava a minha cabeça. Eu nunca culpei as pessoas ou o país pelo que aconteceu (na verdade mesmo, a culpa é da Islândia!!! hehe). E nem fiquei achando que a minha experiência define a Alemanha ou os alemães. Acho esse tipo de pensamento extremamente preconceituoso e negativo. Eu simplesmente não queria voltar. Tive várias oportunidades de ir no ano passado, enquanto morava em Londres, mas o calafrio persistia quando eu pensava na terra do chucrute.
O negócio é que meu coração se fechou pro lugar, mas não para a língua. Sempre achei alemão uma língua linda - forte, imponente - e sentia que estava na hora de meter a cara no quinto idioma. Coloquei na cabeça que ia aprender alemão, e fui me apaixonando cada vez mais com a ideia. Entrei num curso e minha dedicação era total no comecinho - depois foi ficando mais difícil, por causa da monografia, mas o interesse era igual!
Alemão é uma língua bem complexa mesmo, e toda vez que eu aprendia algo novo eu me sentia mais forte do que a dificuldade do idioma. E se eu estava vencendo o alemão, por que não poderia vencer a Alemanha? Na minha pesquisa por cidades onde começar a vida na Europa, fui me forçando a considerar o país de Merkel. A procura começou com Constança, na fronteira com a Suíça, perto de gente que eu amo. E eu fui subindo, subindo... até eu cair de amores por Munique.
Toda vez que vinha uma lembrança dos dias tenebrosos em Berlim, eu dizia pra mim mesma: a minha experiência não vai limitar a minha expectativa. Disse isso até que as lembranças pararam de trazer calafrios, até que o medo desapareceu. Até que eu encontrei um trabalho, um lugar para morar e descobri que bons amigos já estão lá pra me receber (teacher Alê, estou chegandooo!!!). Até que eu comecei a pensar dia e noite em Munique como minha nova cidade. E me apaixonei mesmo.
Ano que vem, meu sórdido episódio em Berlim completa cinco anos. Mas eu não vou estar angustiada nesse próximo abril. Eu tenho certeza que vou ter um sorriso no rosto e a confiança de ter tomado a decisão certa. Eu tenho certeza que a Alemanha vai ter me cativado...
...ou EU vou cativar a Alemanha.
Faltam 8 dias.